9. Água - O que determina a sua Qualidade?

Vamos voltar ao diagrama do Ciclo de Uso/Reuso da Água e observar em quais etapas aparece o requisito Qualidade e analisar com mais atenção os fatores determinantes na Qualidade da Água.

Figura 19. A adequação da água para as diversas aplicações.

A adequação da água para as diversas aplicações.


Os processos químicos e físico-químicos envolvidos na qualidade da água incluem reações ácido-base, oxidação-redução, complexação, solubilização e interações interfaciais, dentre outros.

Os fenômenos ácido-base e de solubilidade controlam predominantemente as concentrações dos íons inorgânicos dissolvidos na água, como o carbonato.

Figura 20. Equilíbrios envolvidos na dissolução de CO2

Equilíbrios envolvidos na dissolução de CO2


Enquanto que a concentração (e a composição) da matéria orgânica e de oxigênio dissolvido é controlada, principalmente, por reações REDOX.

A qualidade da água captada no ambiente natural depende da sua "história", dos caminhos percorridos ao longo do Ciclo Hidrológico até o ponto de captação.

Nesta seção, vamos discutir os processo interfaciais e deixamos para a seção Qualidade as discussões de outros aspectos relativos à qualidade.

Portanto, conhecer um pouco mais quais são esses mecanismos pode ajudar na escolha das tecnologias mais adequadas de tratamento para Uso/Reuso assim como para o Descarte.

O estudo da água é conhecido como Hidrologia e é dividido em várias Ciências (Limnologia, Oceanografia, Meteorologia, dentre outras) das quais destacamos:

9.1. Compartimentos

Nos processos químicos ambientais, não é fácil restringir os limites a um único compartimento, ou seja, apenas na água (hidrosfera), no solo (geosfera) ou no ar (atmosfera). A interação da água com o solo, determina a concentração de metal na água associada. A concentração de carbonato na água depende da interação com o CO2 atmosférico.

Vamos discutir alguns aspectos da interação entre o material sólido finamente dividido e o meio líquido.

Figura 21. A maior parte dos processos químicos em águas naturais e efluentes, não ocorrem em solução mas nas interfaces água-sedimento ou água-material coloidal.

A maior parte dos processos químicos em águas naturais e efluentes, não ocorrem em solução mas nas interfaces água-sedimento ou água-material coloidal.


9.1.1. Sedimentos

Camada que recobre o fundo de rios, lagos, reservatórios, estuários [5] e oceanos composto de partículas minerais e orgânicas finamente divididas e classificadas segundo a granulometria em areia, silt ou argila.

Figura 22. Classificação granulométrica dos sedimentos (Areia, Silt e Argila)

Classificação granulométrica dos sedimentos (Areia, Silt e Argila)


São de grande importância ambiental pois é o local onde habitam muitos organismos (Bentos) que estão próximos da base da cadeia alimentar e onde se depositam os metais e compostos orgânicos.

Figura 23. Vida nos sedimentos (Bentos)(Fonte:www.sci.sdsu.edu)

Vida nos sedimentos (Bentos)(Fonte:www.sci.sdsu.edu)


A transferência dos poluentes para os organismos pode se dar pela prévia dissolução em água ou mesmo pela transferência direta dos sedimentos para os organismos, especialmente os compostos orgânicos hidrofóbicos. Provavelmente a fração de poluentes mais disponível aos organismos está contida na água intersticial, contida nos poros dos sedimentos.

Figura 24. Água intersticial nos poros dos sedimentos

Água intersticial nos poros dos sedimentos


Os sedimentos podem ser formados por três processos diferentes:

  1. Processos físicos: arraste de material particulado produzido pela erosão: argilas, areia, matéria orgânica e outros materiais.

  2. Processos químicos: reações de precipitação.

    Figura 25. Reações de precipitação que contribuem para a formação de sedimentos.

    Reações de precipitação que contribuem para a formação de sedimentos.


  3. Processos biológicos: fotossíntese, quimiossíntese e biodegradação.

    Figura 26. Fotossíntese de biomassa

    Fotossíntese de biomassa


9.1.2. Importância Ambiental das Partículas Coloidais

Minerais, poluentes orgânicos, proteínas, algumas algas e bactérias estão em suspensão na água na forma de partículas finamente divididas com diâmetro na faixa de ~0,01 a ~10 μm as quais são capazes de espalhar luz gerando o chamado efeito Tyndall.

Por causa da sua grande área superficial, os colóides são capazes de adsorver moléculas ou íons da solução de forma reversível ou irreversível. Essas interações podem ser fracas (adsorção física - Van der Walls) ou fortes com formação de ligações químicas (quimissorção).

Em um rio ou reservatório a adsorção reduz a concentração da espécie solúvel, enquanto que na percolação da água no solo, a adsorção na fase sólida (solo) reduz a mobilidade de alguns solutos. Há vários possíveis mecanismos de adsorção, um deles á a atração eletrostática.

9.1.2.1. Colóide Hidrofílico

Consistem geralmente de macromoléculas, tais como proteínas e polímeros sintéticos com forte interação com a água. As partículas coloidais são formadas espontaneamente quando dissolvidos. Ex: polieletrólitos (proteínas, ácidos húmicos).

Figura 27. Colóide Hidrofílico

Colóide Hidrofílico


9.1.2.2. Colóide Hidrofóbico

Partículas com fraca interação com água, podem ser estabilizadas devido à repulsão entre as cargas negativas, ou positivas, presentes na superfície.

As cargas de superfície atraem os contra-íons presentes no meio formando uma dupla camada elétrica. No entanto o aumento da concentração de íons no meio reduz a repulsão entre as partículas desestabilizando o colóide e favorecendo a coagulação do mesmo. Ex: partículas de argila, emulsão de petróleo partículas de óxido de ferro.

Esse fenômeno acontece naturalmente nos estuários onde as partículas coloidais (argilominerais e ácidos húmicos) presentes na água doce dos rios encontram a água do oceano com concentração iônica mais elevada. Nesse ambiente as partículas coloidais se coagulam e se sedimentam contribuindo para a formação dos deltas.(Fonte: O Mundo dos Colóides)

Figura 28. Colóide Hidrofóbico (Fonte: bioquimica.fffcmpa.edu.br)

Colóide Hidrofóbico (Fonte: bioquimica.fffcmpa.edu.br)


9.1.2.3. Colóides por Associação - Micelas

Micelas são aglomerados de moléculas amfifílicas. (Ex: sabões e detergentes). Moléculas amfifílicas contêm uma parte hidrofílica e uma parte hidrofóbica na mesma molécula. Esses aglomerados podem assumir diferentes geometrias, esféricas, cilíndricas ou planares, podendo envolver moléculas hidrofóbicas no seu interior.

Figura 29. À esquerda a estrutura de uma molécula de sabão e de um detergente sintético (Alquil sulfonato linear)(Fonte: www.ucs.br) e à direita o modelo de micelas esféricas (Fonte: quimicalibertador.blogspot.com)

À esquerda a estrutura de uma molécula de sabão e de um detergente sintético (Alquil sulfonato linear)(Fonte: www.ucs.br) e à direita o modelo de micelas esféricas (Fonte: quimicalibertador.blogspot.com)


São sistemas dinâmicos, ou seja, estão se formando e se decompondo continuamente, a partir da Concentração Micelar Crítica (CMC). Micelas de estearato podem conter ~100 moléculas.

Figura 30. Concentração Micelar Crítica, concentração mínima do surfactante para a formação de micelas.

Concentração Micelar Crítica, concentração mínima do surfactante para a formação de micelas.


9.1.2.4. Estabilidade dos colóides

Os dois principais efeitos que contribuem para a estabilidade dos sistemas coloidais são a hidratação e a carga de superfície. A camada de hidratação impede o contato entre as partículas dificultando a agregação e a coagulação. A presença de cargas superficiais também impede a aproximação das partículas coloidais pela repulsão de cargas de mesmo sinal. A quantidade e o sinal dessas cargas de superfície são, em grande parte, dependentes do pH do meio.

9.1.3. Argilas

Mais importante classe de mineral presente na forma coloidal na água, basicamente óxidos de alumínio e silício (silicatos de Al e/ou Mg). Mineral secundário formado pela transformação de rochas primárias.

Ex:

  • caolinita (Al2(OH)4Si2O5) - Tambaú SP,

  • montmorilonita (Al2(OH)2Si4O10) - Campina Grande Pb

Estão associadas a substâncias orgânicas e inorgânicas (ex:óxido de ferro e quartzo(óxido de silício)). Diferem entre si pela: fórmula química, estrutura e propriedades físico-químicas e apresentam uma estrutura lamelar (em camadas) alternada de óxidos de silício e alumínio.

Figura 31. Estrutura típica de uma argila, caolinita: Al2(OH)4Si2O5(Fonte: www.ill.fr)

Estrutura típica de uma argila, caolinita: Al2(OH)4Si2O5(Fonte: www.ill.fr)


As partículas de argila podem assumir carga negativa pela troca de Si+4 por Al+3 ou Mg+2, íons do mesmo tamanho mas com menor carga.

Essa carga negativa deve ser compensada pela atração de cátions para a superfície da partícula (Na+, K+ ou NH4+) os quais podem ser trocados por outros cátions presentes na água e por isso são chamados de cátions trocáveis.

Além disso as argilas, os óxidos e hidróxidos (Ex: Fe, Mn ou Al) podem alterar a carga de superfície em função do pH do meio.

Faixa de valores de Capacidade de troca catiônica para argilas (CTC): 1 - 150 mmol cátion monovalente/100g argila seca

Nota

Uma alta CTC indica uma boa habilidade da argila para "limpar" água contaminada por metais pesados presentes no solo.

9.1.3.1. Cargas de Superfície e o pH (Fonte: www.gly.uga.edu)

O pH do meio também pode alterar a carga superficial de argilominerais. Por exemplo os grupos SiOH (silanol) na superfície da caolinita podem sofrer as seguintes reações em função do pH:

  • pH ácido: SiOH + H+ --> SiOH2+

    Figura 32. Reação do grupo SiOH em meio ácido.

    Reação do grupo SiOH em meio ácido.


  • pH alcalino: SiOH + OH- --> SiO- + H2O

    Figura 33. Reação do grupo SiOH em meio alcalino.

    Reação do grupo SiOH em meio alcalino.


O valor de pH onde o número de cargas positivas se iguala ao número de cargas negativas é conhecido como ponto de carga zero (pH0) ou ponto isoelétrico.

O diagrama esquemático da caolinita permite visualizar o efeito do pH na capacidade de troca iônica, onde o a parte azul clara representa os tetraedros de sílica e a parte azul escura representa os octaedros de alumina.

Em pH abaixo do ponto isoelétrico (pH0) a superfície contendo SiOH2+ atrai os ânions e a superfície apresenta troca aniônica.

Figura 34. Superfície da Caolinita em pH < pH0

Superfície da Caolinita em pH < pH0


Quando o pH é igual ao pH do ponto isoelétrico (pH0) a concentração superficial de SiOH2+ é igual à concentração superficial de SiO- e a superfície não apresenta troca iônica.

Figura 35. Superfície da caolinita em pH = pH0

Superfície da caolinita em pH = pH0


E finalmente quando o pH é maior que pH do ponto isoelétrico (pH0) a concentração superficial de SiO- é maior que a concentração superficial de SiOH2+ e a superfície apresenta troca catiônica.

Figura 36. Superfície da caolinita em pH > pH0

Superfície da caolinita em pH > pH0


O pH do meio também afeta a carga superficial de materiais húmicos pela desprotonação do grupo carboxila resultando em carga negativas ou protonação de grupos amino gerando cargas positivas.

Na tabela abaixo estão alguns valores típicos de pH0 para vários colóides. Os valores dos óxidos dependem do método de preparação e da idade do precipitado.

Tabela 2. Valores de pH0 para vários sistemas coloidais.

Colóide pH0
SiO22,0
MnO22 - 5
Fe2O3 (ematita)4 - 6
FeOOH (goetita)5 - 6
Al2O3 (hidratado) 4 - 5
Material húmico4 - 5
Bactéria2 - 3
Caolinita2 - 5
Montmorilonita2 - 3

9.2. O Exemplo do Fósforo

A presença de alguns sais dissolvidos na água é fundamental para a constituição das cadeias alimentares no meio aquático, pois eles servem como nutrientes para os organismos autótrofos. Em geral, os sais de fósforo ou de nitrogênio são fatores limitantes para o crescimento desses organismos no ambiente aquático, de modo que um aumento excessivo na concentração desses sais pode gerar proliferação exagerada de algas, ocorrendo o fenômeno denominado eutrofização.

Considere agora o problema de analisar a concentração de fósforo em um lago para avaliar o risco potencial de eutrofização. O fósforo pode se encontrar em 2 situações extremas: ortofosfato solúvel (PO4-3), disponível para as algas e plantas aquáticas e fosfato insolúvel na forma de hidroxiapatita (Ca5OH(PO4)3(s) ).

Entre esses 2 extremos existe toda uma gama de material sólido com diferentes densidades e tamanhos de partícula (10 nm a 10 μm), contendo compostos fosforados, orgânico e inorgânico.

Portanto a pergunta é: Qual a fração de fósforo total que pode ser considerada biodisponível?

9.3. E onde entra a Química?

Portanto os conhecimentos específicos da Química Orgânica, Inorgânica e Físico-Química são igualmente importantes na compreensão da "Química das Águas" e podem ser visualizados de maneira esquemática na figura abaixo.

Figura 37. Integração da Química Orgânica, Inorgânica e Físico-Química.

Integração da Química Orgânica, Inorgânica e Físico-Química.




[5] Estuário: ambiente aquático transicional entre um rio e o mar. Um estuário sofre a influência das marés e apresenta fortes gradientes ambientais, desde águas doces próximos da sua cabeceira, águas salobras, e águas marinhas próximo da sua desembocadura. (Fonte: Wikipedia)